sexta-feira

História&Literatura: Clara dos Anjos, o romance denunciante


Em Clara dos Anjos, de Lima Barreto, é relatada a história de uma pobre mulata do subúrbio, filha de um carteiro, que apesar dos cuidados excessivos da família, acaba sendo enganada, seduzida, e deflorado por Cassi Jones, rapaz de condição menos humilde que a sua. Clara na verdade é uma personagem que resume em si a triste condição da mulher de cor vítima do preconceito racial, e da agressão sexual.

Na produção literária anterior à Lima Barreto, pode ser observada uma humilhação moral da figura da mulata, e o estereotipo construído revelando a preocupação com a manutenção do preconceito de cor na sociedade brasileira. Nessa produção literatura a mulata aparece como uma figura dotada de uma série de atributos negativos: sensual, irresponsável, amoral. Sendo uma ameaça ao lar doméstico, a estabilidade das famílias, e, por conseguinte da sociedade. O pesado ônus na sua avaliação moral se deu pelo fato da situação social da mulher negra escrava, esta subordinada as necessidades sexuais de seu senhor; e o condicionamento social da mulher branca: ser esposa e mãe. Reunindo os atributos da mulher branca e negra, a mulata se constituiu um objeto de desejo pelo seu exotismo.

A branca privilegiada livre dos atributos negativos gozava de proteção e segurança. O defloramento significava a interdição ao matrimônio e a condenação da família, na medida que honra feminina estava estritamente ligada à honra familiar. Moças pobres menos protegidas eram alvos de sedução e abandono. No romance há o caso de Inês, primeira vítima do “modinheiro” Cassi Jones, que acaba sendo seduzida, deflorada e expulsa de casa em adiantado estado de gestação. Desgraçada e na prostituição, Inês replica: “É sempre assim. Esses ‘nonhôs gostosos’ desgraçam a gente, deixam como filho e vão-se. A mulher que se fomente... Malvados!”. No entanto, Rosalina, outra personagem, mesmo depois de casada foi abandonada. Era comum isso acontecer com mulheres pobres, como no caso de Rosalina que após ser espancada pelo marido acaba se prostituindo recebendo a alcunha de Mme Bacamarte. Mas há a exceção de Castorina que não teve o mesmo destino à priori das mulheres de sua cor e condição social.

Compartilhando do mesmo desejo de outras moças de sua época, Clara não tinha conta que ela não era como as outras. Não tinha em conta que moças como elas eram seduzidas e abandonadas à própria sorte. Seu padrinho Marramaque, que depois acaba sendo morto pelo rapaz que a seduziu, indagava a jovem Clara, certa vez, de quando se casaria. Marramaque observava bem “a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada” E frisa o autor: “A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social”.

Segundo obra recente sobre condição feminina na colônia1, carinhos, afagos, ‘sinas amatórios’, palavras de amor e promessas de casamento são alguns dos muitos signos do ritual da sedução encontrados nos relatos processuais. A sedução fabricava-se, com a palavra, o gesto e o escrito. A partida do companheiro causava dissabores, humilhação, e angústias de uma gestação que a pejava de mãe solteira. A sacralização do papel social da mãe passava pela construção de seu avesso: a mulher mundana, lasciva e luxuriosa, que fora do matrimônio dispunha livremente da sua sexualidade. O dissabor de uma gestação fora do matrimônio pesava (e hoje ainda pesa) na sociedade em que Clara vivia.

A mente de Clara era permeada pela moralidade dominante, não de toda ignorada pelas classes populares, na qual eram ressaltadas a domesticidade da mulher e o papel que deveria cumprir na sociedade: ser esposa e mãe. A educação que recebeu da mãe demonstrava a dupla preocupação da família. Em primeiro, assegurar o matrimônio à filha em concordância com a moral dominante. Em segundo, livrá-la da triste sina de moças que como ela, negras e pobres, que eram seduzidas e abandonadas, pesando sobre elas a marca que não se apagava da avaliação moral negativa.

Engrácia, sua mãe, era exemplo do longo processo de intensa interiorização das normas sociais pelas mulheres. Com medo de que sua filha se perdesse exerce sobre ela uma vigilância ‘canina’. Contudo isso não impede que sua filha fosse seduzido por Cassi Jones, o ‘profissional da desonra da família’. O autor critica até a atitude de Engrácia, que deveria precaver Clara das coisas do mundo, e de sua situação perante uma sociedade racista, mantenedora do status quo, e excludente.

Seduzida, abandonada, rejeitada pela mãe do sedutor que não queria ter uma nora negra na família, Clara sucumbe perante a sociedade. Nada mais se sabe de Clara, ela submerge na romance e desaparece. Talvez se sua mãe a precavesse do que poderia acontecer com ela, e das conseqüências...Mas Lima Barreto não quis passar isso. Seu romance vai muita além de uma crítica da superficialidades dos fatos. É um Romance denúncia da situação de homens e mulheres, que após a Abolição se viram entregues a própria sorte, marginalizados, e vítimas do preconceito racial. Em especial a mulher negra, vítima não só do preconceito, como historicamente da agressão sexual, nas diversas formas, como a marca de mulher disponível.

Referências Bibliográficas

Leia : BARRETO, Lima. Clara dos Anjos.

DEL PRIORI, Mary. Ao Sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympo, 1995.
________________(org). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,1999.
LEITÃO, Luiz Ricardo. Lima Barreto: o rebelde imprescindível. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de. Preconceito de Cor e Mulata na Literatura Brasileira. São Paulo: Ática,1975.